Gostaria de expressar minha indignação com o programa do governo que recruta artistas voluntários para participar das cerimônias de abertura e encerramento da Copa das Confederações. Por que voluntários? Por que não pagar pelo trabalho desses artistas? E se precisarem de médicos de plantão na Copa das Confederações? Vão chamar voluntários? Será que chamarão um advogado voluntário, se precisarem resolver qualquer problema legal?
Bom, mas um médico é um médico, e um advogado é um advogado, né? E um artista, bem…é só um artista. O que importa se ele estuda uma vida inteira para poder atingir um bom nível artístico? O que importa se um músico, mesmo depois de formado com mérito em uma universidade ou conservatório, continua sua rotina diária de 5, 6, 7 horas ou mais de estudo do seu instrumento (fora os ensaios e o trabalho como professor)? Ele faz porque gosta, não é? Afinal de contas, música, dança, pintura, e todas as outras formas de expressão artísticas são diversão!
Minha pergunta é: para quem arte é diversão? Seguindo essa lógica, não deveríamos pensar que médicos, advogados, engenheiros, e outros profissionais, também deveriam se divertir com seus trabalhos? E pressupondo que eles não se divertem (ou gozam a profissão, no melhor sentido da expressão), isso não é culpa de ninguém, a não ser deles mesmos por não terem escolhido a profissão certa. Se não fazem o que amam, que pelo menos amem o que fazem, ou seja, aprendam a gostar de sua profissão. Não quero aqui insinuar que esses profissionais mencionados não amam o que fazem. Creio que muitos amam suas profissões tanto ou mais do que os artistas amam sua arte (e por que deveria ser diferente?), e tenho por eles enorme respeito. O problema é que a sociedade atribui um valor maior a essas profissões, e até um peso laboral – de colocar a mão na massa – e de responsabilidade, que normalmente não é atribuido ao profissional da música, como se o músico (apropriando-me de uma expressão que vem bem a calhar) “levasse a vida na flauta,” ou seja, como se seu trabalho fosse leve e tranquilo (vale lembrar aqui que a expressão “levar a vida na flauta” foi elaborada, em princípio, em referência ao fato de que, diferentemente de outros instrumentistas, os flautistas carregam um instrumento leve, o que seria uma tarefa fácil de se realizar).
Outra pergunta que faço é: quem eles chamam de artista? Figurantes? Gente para fazer volume nas cerimônias? Ou artistas de verdade (ou seja, pessoas que realmente fazem arte)? De qualquer forma, se analisarmos a equação, temos várias incógnitas, o que gera preocupação. Se o governo se refere a ARTISTAS DE VERDADE (volto a frisar, pessoas que fazem arte), então deveria pagar pelo serviço, como pagará outros profissionais que participarão das cerimônias; se o governo se refere a pessoas que vão fazer volume, por que chamá-los de artista? (Camões que me perdoe pelo sacrilégio com a nossa querida língua, mas não seria mais correto chamá-los de “volumistas”?) Será que o governo usa a palavra “artistas” porque todo mundo no Brasil quer ser artista, e isso pode atrair mais gente para se voluntariar? Devem achar que arte é coisa fácil…ilusão criada pelas novelinhas da Globo e pelos milhares de “artistas” cuja maior arte é mostrar o próprio corpo (ou partes específicas dele) na TV. Esses “artistas” devem ter levado a sério aquela frase que toda mãe, tia, avó, etc, fala para crianças pequenas quando elas estão “aprontando” (o que inclui tirar a roupa em público!): “Já está fazendo arte, né”? Pois é, fizeram disso sua profissão e continuam acreditando que é realmente arte…caso difícil, não? (Não culpemos aqui as pobres mães, tias, avós, etc, que, sabiamente, sempre chamaram às crianças que “aprontam” tais traquinices de “arteiras”, e não artistas).
Voltando à Copa das Confederações, o site Cultura e Mercado (clique para ver a nota), disse que “Os artistas com interesse em voluntariado na solenidade de abertura da Copa das Confederações, em Brasília, têm que ter disponibilidade de 15 de abril a 15 de junho. Os voluntários terão que comparecer aos ensaios que serão realizados no CIEF (Centro Interescolar de Educação Física), conforme agenda a ser montada, em esquema de grupos.
Para os artistas com interesse em voluntariado na cerimônia de encerramento, no Rio de Janeiro, o período de disponibilidade é de 25 de maio a 30 de junho. Os voluntários terão que comparecer aos ensaios que serão realizados no Sambódromo, conforme agenda a ser montada, também em esquema de grupos”.
Agenda, esquema, comparecimento obrigatório…Tudo isso soa como os requisitos de um emprego, não? Mas é para trabalho voluntário. Um absurdo! E vejam bem as datas: para a abertura, o governo quer disponibilidade de 15 de abril a 15 de junho. Dois meses! E quem paga as contas? O governo deveria mudar a chamada para “artistas – ou seja lá ao que eles se referem – muito ricos”. Ou deveríamos pensar que o governo acha que todo o artista é vagabundo e, já que não tem o que fazer, vai ficar maravilhado com essa “super” oportunidade?
De qualquer forma, esteja o governo convocando artistas ou passistas (vulgo “artistas”), aproveitamos a oportunidade para fazer um protesto com relação ao que se entende sobre arte e sobre a profissão artística na sociedade, o que independe da convocação do governo. A ideia que se perpetua largamente é que, obviamente, os artistas (os verdadeiros) não precisam receber pagamento, porque “vivem de arte” (já no caso dos de mentirinha, aceita-se – e até espera-se – que cobrem cachês altíssimos para mostrar sua “arte” em rede nacional). Entretanto, essa linda e poética expressão (viver de arte), que visa dar um ar nobre à profissão do artista (de verdade), deve ser vista por um outro ângulo, o mais prático: será que o artista vive (come, compra roupas, paga aluguel, paga escola dos filhos, etc) de arte? Será que a vida prática do artista, no dia a dia, é tão poética e nobre como a tal expressão disseminada aos quatro ventos faz crer?
Essa ideia absurda de que artista (de verdade) não liga para dinheiro porque “vive de arte” ainda se perpetua na mente das pessoas. Não ligar para dinheiro não significa que o artista não precisa de dinheiro para viver. A classe artistica precisa se unir e agir como um grupo coeso, para que a arte seja respeitada como profissão. Arte não é coisa de vagabundo. Arte é coisa séria, que reflete a maneira como um povo pensa, ao mesmo tempo que ajuda a formar identidades pessoais e coletivas de uma comunidade. A arte ajuda a formar o modus operandi de uma comunidade, onde o artista exerce um papel importantíssimo, disseminando ideias e criando laços comuns entre as pessoas.
Voluntariado é uma atividade nobre, e deve ser exercida por todos os membros da sociedade. Mas quando o voluntariado é institucionalizado pelo governo e se dirige à uma classe profissional específica, já passa a ter implicações muito mais sérias, que precisam ser analisadas e confrontadas.
E se o governo chama passistas de artistas, o problema é tão ou ainda mais sério (será que se confundiram por causa da rima?)
Compartilhe esse post para tornar cada vez mais clara a indignação da classe artística com a falta de conhecimento sobre o que é ser artista, o que gera um tremendo desrespeito ao artista e à sua profissão.
Vamos informar esse povo, gente! E para os artistas (grupo no qual eu me enquadro): vamos parar de fazer papel de otário! Arte é profissão, e nós devemos ser os primeiros a saber disso!
Para ver o site do absurdo programa de voluntariado do governo, clique no link a seguir: www.brasilvoluntario.gov.br
Obrigado,
Gabriel Ferraz, pianista e musicólogo
Idealizador do Zap Músico
Indignado com o descaso da sociedade para com o artista
A equipe do Zap Músico agradece sua visita!
Obrigado por compartilhar o post, Márcio! Sucesso!
ResponderExcluirGabriel Ferraz,
idealizador do Zap Músico, site para músicos